Fico me perguntando o que escrever, afinal.
Acho que Roberto Carlos descreve bem um mundo de coisas em "bicho.... foram tantas emoções".
As férias foram providenciais, vejo agora. Se estivesse trabalhando estaria em pânico. Como tenho tempo - pois realmente me desliguei do trabalho, coisa que estava duvidando que faria - não estou em pânico. Gosto muito de organização, mas não posso dizer que sou a pessoa mais organizada do mundo. Só que se realmente tem uma coisa que me incomoda é bagunça e, com os dias livres, tenho colocado tudo em ordem: roupas, livros, partituras, coisas do candomblé - rende um parágrafo à parte.
Coisas do candomblé. Como foi difícil, hoje, me deparar com a parte do armário dedicada às "coisas do candomblé" (para o leitor não viajar na maionese nessa hora, especifico: apostilas; cadernos; livros; missangas para fios; baralhos e mais baralhos de tarô; velas; cigarrilhas; incensos. Só). Fui tirando tudo para abrir espaço e não sabia exatamente o que fazer com as coisas, mas o problema não foram os objetos e sim as lembranças que eles trouxeram.
Fiquei melancólica. Senti uma certa frustração. Tantos sonhos, expectativas, experiências, tempo, dinheiro, estudo, tanta coisa investida nessa religião, sete anos a partir da iniciação com as dúvidas na cabeça (para onde vou? O que Oxum quer de mim? Vou ser mãe-de-santo?), convivendo semanalmente com os ensinamentos orais passados como quem não quer nada, na cozinha do terreiro - candomblé é assim: hierarquia rígida, discrição, olhos e ouvidos atentos; muita coisa é ensinada só quando realmente for preciso saber, quando a situação pedir, quando algo estiver sendo feito e um esclarecimento for necessário, ou quando o pai de santo estiver de bom humor e, entre uma brincadeira e outra, sussurrar algo que te faça pensar por dias a fio.
Convivendo semanalmente com espíritos que se intrometem na casa e prontamente são "convidados" a se retirarem, com os espíritos que acompanham os clientes que chegam, em desespero, no terreiro, tomando banhos sagrados para saudar o orixá, nunca sabendo exatamente o que pode e o que não pode acontecer, ou se "ver". Assim é um terreiro de candomblé, contato constante com o sobrenatural.
Me veio a lembrança da última incorporação da Oxum, não porque eu me lembre, mas porque me contaram - o orixá chorou. O orixá saudou o pai de santo no chão, levantou-se, abraçou-o e chorou, chorou muito, fazendo com que ele rapidamente fizesse o orixá sair do cavalo (no caso, eu). Evidente que eu sabia que tinha chorado pois sentia o rosto molhado de lágrimas, mas não sentia vontade de chorar e não sabia porque Oxum tinha chorado. Ela, a dona dos homens e mulheres que choram.
Na época, todos relacionaram isso ao fato da mãe do pai de santo estar enferma e sua morte iminente.
Hoje, fico pensando se Oxum não estava chorando por saber que seria a última vez que estaria incorporada em mim, pelo menos dentro daquele terreiro.
Terreiro que não existe mais, aliás. A casa, alugada, foi pedida de volta e quando fui buscar Oxossi apenas ele estava lá, como orixá. Todos os outros - e todo o resto, móveis, tudo - já haviam sido retirados. Eu não sabia.
Falo muito de mim como filha de santo iniciada na religião, mas não podemos esquecer que Ricardo também é um yawo, mais novo do que eu, um filho de Ayrá, Deus da justiça, do trovão, uma espécie de Xangô mais calmo. Eu sou filha de Oxum e Xangô, tenho a deusa africana mais linda como mãe, e o deus mais poderoso e bravo como pai. Tenho a personalidade dos dois comigo. Ricardo tem Ayrá, justo e poderoso, como pai, e Iemanjá, senhora das águas salgadas, um pouco avoada, como mãe. Ayrá e Oxum são, por sua vez, pai e mãe do pai de santo.
Falo isso porque é sabido que se um pai ou mãe de santo fizer um Ayrá e deixar o orixá sair da casa, o terreiro se desfaz.
Ouço isso desde que entrei no candomblé; e foi exatamente o que aconteceu. Ayrá, deus justo, saiu; o terreiro acabou.
Acho muito interessante saber o orixá das pessoas, principalmente porque realmente batem com a personalidade da pessoa.
Voltando aos fatos, tudo isso me passava pela cabeça enquanto tirava item por item do armário, sem saber o que fazer com tudo aquilo, sem saber o que fazer com as lembranças, com o vazio, com as fichas que foram todas apostadas em.... nada.
"Ah, experiência", você pode argumentar. Experiência, sim.... experiência.... e que experiência!
Quando falo para as pessoas que saí do candomblé percebo, impreterivelmente, um alívio. Com muita boa vontade, esse alívio às vezes é disfarçado num "hum, mas não era esse mesmo o caminho, né Ana". Às vezes, nem isso: "ah, que bom porque mexer com essas coisas não é bom mesmo", assim, com os dois pés no peito. Nessas horas, dependendo de como estou - e estou tão cansada de tudo - não esboço nenhuma tentativa de "mas você não conhece para falar".
Acho que dou um sorriso pálido e educado, e calo.
O que percebo é que o preconceito em relação ao candomblé e à religião africana de modo geral é tão forte, tão estereotipado e tão vazio de realidade e informação que, estando cansada, o melhor é calar, mesmo.
"Você está cansada? Mas está de férias". Estou sim, leitor. Estou cansada e tratando a depressão. Busquei ajuda médica e também busquei ajuda espiritual. E isso é o máximo que vou escrever sobre mim, porque realmente cansei de tudo, inclusive da música - fundo de poço, cansar de música. Parei de ouvir, voltei a ouvir, parei de novo e agora parei mesmo. Evito sair de casa, cumpro os compromissos com Brexó, com Café, ouço o necessário, mas o leitor não sabe que isso não é o normal porque sou fissurada em música. Eu ouço o tempo todo, o dia inteiro se puder, ou toco o dia inteiro, eu amo. Amo. Ser musicista sempre foi a meta desde criança, desde antes de saber o que era meta... acho linda a frase "a música me escolheu", ouço muitos músicos falarem isso, acredito ser verdade, tenho a minha vida e a de outras pessoas como prova de que realmente é assim que acontece com músicos com M maiúsculo, aqueles que têm a coragem de fazer disso a sua vida e não só um comércio ou uma alternativa para inflar o ego.
E tenho observado muito disso. Ego.
"Ainnnnn tá, vai dizer que não gosta de palco" - claro que gosto. Mas tenho minhas dificuldades. Sempre tive. Eu trato música como algo sagrado e transcendental.
Em dias assim - esses dias - todas as dificuldades ficam acentuadas. E recebo os feedbacks delas.
Não sei se consigo me expressar direito a respeito do que penso sobre música. Poderia escrever assim "música é o que importa, dane-se eu". Não sei se a frase seria totalmente verdadeira, mas que tem um grande potencial para ser, tem, sim.
Em dias assim, esses dias, tem todo o potencial para ser uma frase muito autêntica.
"Evito sair de casa" - hoje nem vi o sol. Com os remédios agindo, me sinto um pouco anestesiada. Minha vontade às vezes é ficar perdida naquela mata que está na estrada para o "Bar da Cachoeira", em Joaquim Egydio, rs (o Bar da Cachoeira está localizado numa região que poderíamos chamar de difícil acesso, em Campinas - fica numa fazenda; passando Joaquim Egydio, sobe-se uma estradinha de terra sem fim, para finalmente se chegar ao local. É famosíssimo como a melhor gastronomia de Campinas e várias vezes toquei lá. Antes dessa estrada de terra, passa-se por uma mata fechada, com uma entrada 'formal' - deve ser um bosque, não sei, deve ter trilhas - e sempre, sempre, ao passar por esse local, fico curiosa sobre o lugar. Quero entrar nesse bosque).
Estou cansada de falar sobre mim, seja para o bem, ou para o mal, ou para esclarecer, ou para mostrar, ou para o que quer que seja. Toquei nesse fim de semana e procurei fazer o meu melhor, mas estava incrivelmente nervosa. O leitor não vai acreditar, mas passo mal, antes. Fico extremamente ansiosa. Misturei remédios para gripe, estômago, alergia, ombros doendo, coluna doendo, som excelente e a voz saindo com dificuldade, travada, tosse. Água. Penso em beber e imediatamente desisto da ideia ao lembrar que não posso misturar remédios e álcool (tenho misturado, aliás...). Forço a voz. Finalmente começa a ficar melhor. Eu não estava na vibe. Estava fria, distante, profissional - eu, que já não ligo muito para o público - honrando a data, cumprindo o compromisso, me esforçando para pôr sentimento naquilo, para sentir alguma coisa. Quando um amigo chega, a coisa muda de figura um pouco. Quando ele vem cantar comigo, me sinto finalmente à vontade. E é isso. No sábado, acompanhei meu marido no trabalho dele, de fotos.
Fui para uma festa de 15 anos num belíssimo condomínio, belíssima casa, fiquei a tarde inteira observando os adolescentes, me senti maltratada pelo barman "quais drinks tem?", "estão no menu" foi a resposta seca, tipo "leia aí, sua burra" (leve em conta, leitor, que não estou bem, então posso não ter sido maltratada coisíssima nenhuma - só me senti assim). Drinks sem álcool para a garotada, escolho um com leite condensado - que seja doce, ao menos, foi o que pensei.
Aí o pai da aniversariante passa um video no final e faz um super discurso emocionado para ela. Chorei, atrás de uma pilastra.
Não quero me colocar como vítima das circunstâncias. Não me considero vítima das circunstâncias. Mas não me importo em admitir que preciso de ajuda. E esse post será o primeiro e único em que isso será admitido e mencionado. Bola pra frente. Bola pra frente. Bola pra frente. Bola pra frente.
De resto, caro leitor, pode observar minha carinha sorridente nas fotos e pensar, com razão, que estou sendo muito bem cuidada, que mesmo não estando cem por cento sei me portar socialmente e que não há razões para lamentações, se olharmos além. E realmente não há razões. Comentava isso com Ricardo, a caminho do Magnólia, ontem. A necessidade de tirar os olhos do próprio umbigo e olhar em volta, a urgência em se fazer algo. Ainda discutirei isso com o psicólogo e acho que ele não será a favor da ideia agora mas, assim que estiver melhor, quero tocar por aí - asilos, instituições beneficentes, onde quer que seja, onde quer que aceitem. Eu preciso. EU preciso.
Isso também, só será mencionado neste post. Talvez os benefícios sejam mencionados em posts futuros.
E vamos para o lado pragmático da coisa. Depressão tem cura. Não vamos subestimar mas também não vamos superestimar. Algumas dificuldades sim, faz parte do processo, mas estamos aí, na coletividade; nos defendendo de situações que agravem a sensibilidade exacerbada - fugindo da música, por exemplo - e lidando com tudo de forma racional, melancólica e, talvez, com uma triste compreensão das coisas, das pessoas e dos acontecimentos.
Triste compreensão das coisas, das pessoas e dos acontecimentos. Sim.
Acho que nunca fui tão Lucy, num texto.
O post começa com música, "Magic", Coldplay. Mas, não. Não a ouço.
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